- Foi mal, essa merda foi desligada em um volume alto. Nem vi. - e roda o potenciômetro em forma de caveira da sua Fender Stratocaster seminova, vermelho-escarlate, evitando diminuir o volume na própria caixa e passar por cima da cama para chegar ao outro lado do quarto.
- Isso aconteceu comigo na minha outra banda, aonde também toco guitarra. O ampli estava no talo e, quando dei o primeiro acorde, quase matei meu gato. Ele dormia ao lado da caixa! - diz a baixista segurando um velho Washburn verde-musgo já maltratado pelo tempo de uso. Ela ajeita o cabelo vermelho em um coque malfeito - Por falar em gato...ô batera, cadê o "gatão"?
- Me ligou falando que está chegando. Teve um problema no trabalho.
- Vocalista é foda. Sempre a estrela. - diz o guitarrista desenroscando o cabelo longo das tarrachas douradas do instrumento. Elas refletem a luz do sol da tarde.
- Relaxa que daqui a pouco ele está aí. Aliás, nem poderemos ensaiar muito. Meus pais chegam mais cedo hoje.
A porta do quarto se abre e o vocal entra esbaforido, com marcas de suor nas axilas da camisa e ainda com o crachá torto no pescoço. "Atendente de Telemarketing", é o que diz nele.
- Foi mal, galera. Hoje o dia foi foda, mas vamos lá.
E, depois de enrolar o cabo na mão duas vezes para que o fio partido funcione, pluga o microfone roubado de um videokê de bar em um velho Wattsom de 200.
A partir daquele momento desapareceram as notas baixas nas aulas, as brigas com namoradas, as procuras mal sucedidas por emprego e todos os conflitos com os pais. O vocal nunca cantou e berrou com tanta vontade quanto ali. O baterista, embalado pela emoção, executou cada composição com uma pegada incrivelmente apaixonada, como se as peles já maltratadas e os pratos bangelas sustentados por toscas estantes improvisadas com vergalhões fossem meras extensões do seu corpo. O guitarrista fez cada acorde e cada solo de uma maneira única, imaginando estar tocando para uma platéia faraônica, tendo seu longo cabelo lambido por uma ventania milimetricamente perfeita, como nos clipes da MTV. Até mesmo a baixista, a mais comedida no palco, ousou fazer linhas de baixo mais ousadas e trabalhadas, apesar da acústica do local só permitir que se ouça, daquelas quatro cordas grossas e enferrujadas, um abafado tundundum que fazia tremer as capas de DVD da escrivaninha e os bibelôs do criado-mudo da empregada evangélica. "É o som do cão!" grita a doméstica de seu quarto, em gesto de esconjuro.
10 comentários:
Haha legal essa crônica do dia-a-dia contemporâneo. Bem soltinho o texto, bem cotidiano, bem legal...
Lindu!
Cara, eu como baterista posso falar que esse texto é a cópia exata dos ensaios da minha banda, a mesma sensação de frustação ao final do ensaio do baterista, muito bom o texto.
qualquer semelhança com alguma experiência minha é mera coincidência.
'
Por aquela hora, eles se fizeram divinos. Desafiaram o reinado do céu e reestabeleceram o antigo politeísmo dos primeiros povos pagãos. Se consagraram como deuses com cânticos de louvor orquestrados pelas ninfas Contra-baixo, Bateria, Voz e Guitarra. Deuses elétricos que fazem parte do único panteão aonde é possível roubar um beijo de Afrodite, mostrar o dedo médio para Apolo e quebrar uma cornucópia na cabeça de Zeus. Deuses do rock.'
Perfeito! Esse texto pode ate´ coincide^ncia mas se reflete `a realidade da minha banda.
Caraca, gostei muito do texto cara, vc escreve muito bem. E eu te conheço! Vc e´ amigo da Kammy e conhece meu amigo Ze´ Rafael! Como vc achou meu blog ?
Imaginei a cena do início ao fim. Tudo muito real.
"É o som do cão!"
em TODOS os movimentos, ações e falas da baixista eu me encaixei (ok, adeque ao masculino xD).
parabéns, você está conseguindo transpor para o texto as suas experiências em banda.
(Y)
Aaaaaaaaaaaaaaaah o underground...
Suspirei!
aaaaah muito bom!
Pupy, fiz um blog... inciante, sabe como é. linkei o seu.
Só quem já tocou numa banda vai poder saber quão próximo à realidade você ousou chegar nesse texto. Parabéns, rapaz! Abs, Yuri.
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