Ontem estive no A Casa Caiu!, uma ocupação/manifestação apartidária contra os males aos quais as instituições financeiras, grandes corporações e governos sujeitam os cidadãos (resumidamente), que ocorreu na Cinelândia - e, até onde sei, o acampamento ainda está armado por lá.
Achei ótimo. Teve um pouco de tudo: debate, performance, música, leitura de poesias. Mas, na verdade, o que me deu uma vontade incondicional de relatar não foi sobre o evento em si, mas a respeito de um caso que aconteceu comigo e uma amiga no local.
Enquanto observávamos um grupo fazer cartazes com dizeres anticorporativistas, conversávamos sobre como, geralmente, as classes média e alta são as que aderem mais a este tipo de movimento, enquanto as mais baixas, que sofrem muito mais com o descaso dos governos, não veem muita razão e propósito em protestos e manifestações. Como uma ironia do destino, durante o nosso diálogo, surgiu um cara do meu lado e disse:
- Qualquer um pode pegar um desses cartazes e escrever o que quiser?
Virei e olhei para ele. Tinha a aparência de um morador de rua, vestido com roupas surradas e com alguns dentes a menos na boca.
- Ah, pode sim, desde que tenha algo a ver com o movimento - eu respondi.
- Então, por que vocês não pegam um cartaz e escrevem assim: por que numa terra onde tudo dá tem tanta gente passando fome?
Fiquei perplexa por alguns segundos com a frase. Ele continuou, se empenhando em explicá-la:
- É porque eu fico pensando... A terra aqui do Brasil é boa. Você joga uma semente em qualquer lugar e ela dá... Por que tem tanta gente passando fome aqui?
- Então, cara, muito bom. Por que você não pega um cartaz e escreve a sua frase? – sugeri.
- Porque eu não sei escrever. Eu sou analfabeto!
Minha cara foi ao chão e meu coração se estilhaçou em mil pedacinhos. Fiquei sem saber o que responder. Provavelmente fiquei até roxa de vergonha. Senti um aperto no peito, uma pena do sujeito. Ser analfabeto... é ser cego pro mundo.
- Vou pegar um cartaz e escrever pra você – falei.
- Qual o seu nome? – perguntou Amanda, minha amiga.
- Anderson. Daqui a pouco eu volto aqui. Vou cobrar o cartaz! Eu sou vigia de carros ali na rua de trás.
Conseguimos um cartaz e umas canetinhas com o pessoal. Me agachei e escrevi os dizeres em letras garrafais.
Algum tempo depois, Anderson voltou.
- Aqui, Anderson, fizemos o seu cartaz.
- Opa, obrigado! – e pegou a cartolina, se sentindo orgulhoso – Mas tá faltando uma coisa... Escrever RN, que é da onde eu vim... É RN que se escreve, né?
Acrescentei o RN. Ele pegou o cartaz e saiu exibindo-o pela Cinelândia. Daqui a pouco, todos começaram a fotografar Anderson e sua placa. Um canal de TV o entrevistou. E ele gritou para o produtor:
- Elas que escreveram pra mim, mas fui eu que pensei na frase! Elas são minhas empresárias!
Rimos.
Ficamos no evento até mais tarde, e toda vez que Anderson passava por nós, nos reverenciava, exclamando “minhas empresárias!”.
Por algum motivo, essa pequena ação fez o meu dia. Anderson continua sendo analfabeto, nada mudou. Mas, de certa forma, ele conseguiu expressar o que queria dizer, mesmo que através de uma placa que não foi escrita por sua própria mão. Se Anderson tivesse uma oportunidade de estudar, de se alfabetizar, aí sim eu ficaria feliz de verdade. Espero que isso aconteça um dia, e que Anderson possa escrever centenas de cartazes. Quantos Andersons haverá por esse Brasil afora? Aonde Anderson poderia estar agora se tivesse estudado?
2 comentários:
Cadê o "RN" no cartaz?
Pois é, já é a segunda pessoa que me pergunta! É que eu tirei a foto antes de escrever o RN, logo abaixo do nome dele...
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