- Ah, fica só mais um pouquinho, Julinho! O bolo já está saindo.
- Tudo bem, dinda.
- Do que você está rindo?
- Desculpa, é que lembrei de uma piada da internet.
- Hmm, sei. Você e essa internet. Um dia ela vai te causar grandes problemas. Ah, se vai.
- Ô...
O perfume do bolo simples (o famoso bolo de bolo) se mescla ao cheiro fresco do café fumegante precocemente passado que sai das duas xícaras cheias. Ao lado, uma cesta com pães de queijo, uma travessa com biscoitos de polvilho, algumas broas, uma tábua com queijo branco, manteiga e uma porção de bolinhos fritos de fubá compõem a fotogenia gastronômica da mesa. Típico café da manhã mineiro. Ao lado de Júlio, uma pequena mala.
- Nossa. Maravilhoso esse bolo, minha dinda!
- Jura? Mas ele é o mesmo que eu faço sempre. Realmente você não vem aqui faz tempo.
- Pois é...
- E ficou só uma semaninha e já vai sair batido. Nem foi ver os primos na rua de cima...
- Pois é. Eu estou com uns problemas urgentes para resolver, mas prometo que volto em uma ocasião mais tranquila.
- Julinho...
- Oi...
- Pode se abrir com a Iraci aqui. Você anda metido com tóxico?
- Haha! Que isso, minha madrinha? Nem beber eu bebo...
- E andou se envolvendo com mulher de gente metida com tóxico?
- Dinda, eu nem namorada tenho...
- Então o que foi que te fez despencar de Tijuca até Lagoa Santa para ficar uma semana escondido aqui, sem nem sair de casa, menino? Eu fico preocupada...
- Tudo bem, eu vou te explicar. Mas tem que ser no quarto.
- Tudo bem.
Após fechar as cortinas, ele abriu a mala e sacou o laptop.
- Que isso?
- É um jogo, minha dinda. Um jogo de computador.
- É disso que você brinca tanto, né?
- É com isso que eu tra-ba-lho. Eu sou designer de jogos.
- Ah sim, eu sei que você desenha coisas. Desde pequeno...
- E este jogo é uma criação minha. Lembra do lançamento?
- Lembro mais ou menos. É "verbo", né?
- Verbum...
- Isso, Verbum. Lembro do jornal falando algo sobre, mais ou menos. É para fazer monstros, né?
- Deuses, tia. O jogo é um criadouro de deuses. Aqui no Verbum, o jogador cria as suas entidades, forma o seu próprio panteão e os administra de acordo com os grupos humanos existentes no mundo.
- É um jogo para brincar de deus???
- Não, isso já existe aos montes. No Verbum, a filosofia é mais complexa. Aqui, você cria os deuses, formula os poderes e personalidades de cada um e o problema é relocá-los de acordo com os períodos históricos da humanidade e com a forma que as religiões vão interpretando os anseios de cada um deles com o passar do tempo. Vê essa barrinha? Ela mede a influência de cada um no mundo de acordo com cada época. Isso parece simples, mas os problemas que vão surgindo são tão grandes, complexos e envolventes que, se algo der errado, se perdem milênios de trabalho e de horas de jogo. Aliás, cada século de influência equivale a grandes pontuações na rede on-line, entende? Os deuses que perdem influência, simplesmente morrem.
- Nossinhora, complicado! E nenhum religioso encrencou contigo?
- Err, então...
- Ih, não diga! Muitos?
- Eu diria que o suficiente para eu ter que sair do Rio por uns tempos.
- E por que você não me disse isso antes?
- Eu queria evitar que alguém viesse aqui te fazer mal. Você é a única pessoa que confia em mim de verdade. Meus pais estão preocupados demais com as próximas pessoas que eles vão processar, sabe. Você não. Você me escuta. E também não quero depender deles para mais nada.
- Mas agora ocê vai para onde?
- Tenho uns amigos morando no Norte, perto das fronteiras. Vou passar uns meses por lá até que as coisas esfriem um pouco...
- Você sabe que pode ficar aqui o quanto quiser. Esse quarto é seu...
- Não quero que você se preocupe comigo, minha dinda. Já abusei demais do seu carinho e hospitalidade.
- Mas é que, você ficar fugindo assim...não tá certo não.
- No momento eu não tenho muita escolha. Pouca gente está ao meu favor.
- Tá bom, né. Vá com Deus, Julinho.
- E ele estará comigo. Aliás, muitos outros!
- ...eu falo do de verdade.
- Eu estava brincando. Beijos, madrinha!
- Beijos, Julinho. E juízo.
O relógio marca 8h. Júlio pega suas malas e sai da casa de sua madrinha em direção para a rodoviária. O cheiro de mato molhado o faz lembrar da infância e da época que se divertia sem o vício do silício. No caminho, Júlio para em uma banca de jornais para comprar créditos para seu celular. Cheiro de pipoca doce.
8h10. Ao procurar seu nome ou nickname em alguma capa de jornal, Júlio nota dois homens vestidos de negro e barbudos ao seu lado. Júlio aperta o passo e muda o caminho.
8h20. Ao fitar a esquina da rodoviária, Júlio dá uma olhada periférica para trás e vê que os homens estão logo atrás dele, mas andando tranquilamente. Júlio engole seco e entra no banheiro químico. De lá, fica com a porta levemente entreaberta para ver quando seu ônibus sairá.
8h40. A fila para entrar no coletivo já está diminuindo e Júlio ainda está no banheiro público, quase sem respirar. Os olhos ardem.
8h50. Assim que a última pessoa entra, Júlio dá uma pequena corrida e entra logo em seguida, ofegante. Júlio entrega seu bilhete, guarda a pequena mala na parte de cima e se senta.
8h55. Júlio sua frio ao ver que os dois barbudos estão no corredor do ônibus e estão prestes a se sentar ao seu lado. Dor de barriga.
9h. O ônibus sai. O sino da igreja da cidade toca. A missa vai começar.
- Do que você está rindo?
- Desculpa, é que lembrei de uma piada da internet.
- Hmm, sei. Você e essa internet. Um dia ela vai te causar grandes problemas. Ah, se vai.
- Ô...
O perfume do bolo simples (o famoso bolo de bolo) se mescla ao cheiro fresco do café fumegante precocemente passado que sai das duas xícaras cheias. Ao lado, uma cesta com pães de queijo, uma travessa com biscoitos de polvilho, algumas broas, uma tábua com queijo branco, manteiga e uma porção de bolinhos fritos de fubá compõem a fotogenia gastronômica da mesa. Típico café da manhã mineiro. Ao lado de Júlio, uma pequena mala.
- Nossa. Maravilhoso esse bolo, minha dinda!
- Jura? Mas ele é o mesmo que eu faço sempre. Realmente você não vem aqui faz tempo.
- Pois é...
- E ficou só uma semaninha e já vai sair batido. Nem foi ver os primos na rua de cima...
- Pois é. Eu estou com uns problemas urgentes para resolver, mas prometo que volto em uma ocasião mais tranquila.
- Julinho...
- Oi...
- Pode se abrir com a Iraci aqui. Você anda metido com tóxico?
- Haha! Que isso, minha madrinha? Nem beber eu bebo...
- E andou se envolvendo com mulher de gente metida com tóxico?
- Dinda, eu nem namorada tenho...
- Então o que foi que te fez despencar de Tijuca até Lagoa Santa para ficar uma semana escondido aqui, sem nem sair de casa, menino? Eu fico preocupada...
- Tudo bem, eu vou te explicar. Mas tem que ser no quarto.
- Tudo bem.
Após fechar as cortinas, ele abriu a mala e sacou o laptop.
- Que isso?
- É um jogo, minha dinda. Um jogo de computador.
- É disso que você brinca tanto, né?
- É com isso que eu tra-ba-lho. Eu sou designer de jogos.
- Ah sim, eu sei que você desenha coisas. Desde pequeno...
- E este jogo é uma criação minha. Lembra do lançamento?
- Lembro mais ou menos. É "verbo", né?
- Verbum...
- Isso, Verbum. Lembro do jornal falando algo sobre, mais ou menos. É para fazer monstros, né?
- Deuses, tia. O jogo é um criadouro de deuses. Aqui no Verbum, o jogador cria as suas entidades, forma o seu próprio panteão e os administra de acordo com os grupos humanos existentes no mundo.
- É um jogo para brincar de deus???
- Não, isso já existe aos montes. No Verbum, a filosofia é mais complexa. Aqui, você cria os deuses, formula os poderes e personalidades de cada um e o problema é relocá-los de acordo com os períodos históricos da humanidade e com a forma que as religiões vão interpretando os anseios de cada um deles com o passar do tempo. Vê essa barrinha? Ela mede a influência de cada um no mundo de acordo com cada época. Isso parece simples, mas os problemas que vão surgindo são tão grandes, complexos e envolventes que, se algo der errado, se perdem milênios de trabalho e de horas de jogo. Aliás, cada século de influência equivale a grandes pontuações na rede on-line, entende? Os deuses que perdem influência, simplesmente morrem.
- Nossinhora, complicado! E nenhum religioso encrencou contigo?
- Err, então...
- Ih, não diga! Muitos?
- Eu diria que o suficiente para eu ter que sair do Rio por uns tempos.
- E por que você não me disse isso antes?
- Eu queria evitar que alguém viesse aqui te fazer mal. Você é a única pessoa que confia em mim de verdade. Meus pais estão preocupados demais com as próximas pessoas que eles vão processar, sabe. Você não. Você me escuta. E também não quero depender deles para mais nada.
- Mas agora ocê vai para onde?
- Tenho uns amigos morando no Norte, perto das fronteiras. Vou passar uns meses por lá até que as coisas esfriem um pouco...
- Você sabe que pode ficar aqui o quanto quiser. Esse quarto é seu...
- Não quero que você se preocupe comigo, minha dinda. Já abusei demais do seu carinho e hospitalidade.
- Mas é que, você ficar fugindo assim...não tá certo não.
- No momento eu não tenho muita escolha. Pouca gente está ao meu favor.
- Tá bom, né. Vá com Deus, Julinho.
- E ele estará comigo. Aliás, muitos outros!
- ...eu falo do de verdade.
- Eu estava brincando. Beijos, madrinha!
- Beijos, Julinho. E juízo.
O relógio marca 8h. Júlio pega suas malas e sai da casa de sua madrinha em direção para a rodoviária. O cheiro de mato molhado o faz lembrar da infância e da época que se divertia sem o vício do silício. No caminho, Júlio para em uma banca de jornais para comprar créditos para seu celular. Cheiro de pipoca doce.
8h10. Ao procurar seu nome ou nickname em alguma capa de jornal, Júlio nota dois homens vestidos de negro e barbudos ao seu lado. Júlio aperta o passo e muda o caminho.
8h20. Ao fitar a esquina da rodoviária, Júlio dá uma olhada periférica para trás e vê que os homens estão logo atrás dele, mas andando tranquilamente. Júlio engole seco e entra no banheiro químico. De lá, fica com a porta levemente entreaberta para ver quando seu ônibus sairá.
8h40. A fila para entrar no coletivo já está diminuindo e Júlio ainda está no banheiro público, quase sem respirar. Os olhos ardem.
8h50. Assim que a última pessoa entra, Júlio dá uma pequena corrida e entra logo em seguida, ofegante. Júlio entrega seu bilhete, guarda a pequena mala na parte de cima e se senta.
8h55. Júlio sua frio ao ver que os dois barbudos estão no corredor do ônibus e estão prestes a se sentar ao seu lado. Dor de barriga.
9h. O ônibus sai. O sino da igreja da cidade toca. A missa vai começar.
3 comentários:
Puppet's got talent :)
Muito bom!!! Ainda estou refletindo a respeito.
ahahaaha que pirado!
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