Era assim: a pessoa se matriculava e passava por uma sabatina de desaprendizados de tudo aquilo que aprendeu em uma sala de aula. Desta forma, todas as falácias que sujavam o conhecimento acabavam indo para o ralo. Era praticamente uma retrolavagem cerebral.
Pelo menos foi isso o que o diretor da instituição me disse.
O mais engraçado é que eu encontrei o local por mera concidência, enquanto andava pelo Centro e, em um desses momentos que a gente resolve pular fora do trilho do cotidiano, acabei virando uma esquina que nunca virava. Logo ao lado de uma pastelaria insalubre, estava o letreiro pobre: Centro Intensivo de Desaprendizagem. Vi e entrei, simples.
Lá dentro eu pude, de cara, acompanhar uma das primeiras dinamitadas que alguns paradigmas sofriam durante o descurso. Em todas as salas do prédio antigo, milhares de estudantes se sentavam e iam assimilando tudo o que os contraprofessores iam falando. Na primeira classe que espiei pela janelinha da porta, vi que um deles dizia algo sobre como a escola seria exatamente o que o mundo "lá fora" é, com todas as suas panelinhas, fofoquinhas, grupos de interesse e disputa entre os coleguinhas de carteira para saber quem eram os mais populares, que tiravam as maiores notas, conseguiam as melhores garotas e os melhores lugares na sala, sem falar nos que sofrem violência física e psicológica costante. Percebi que a ideia da escola como um mundo a parte que exclui o indivíduo do mundo real já morria ali, pois aquele seria o próprio mundo. O que muda é só a escala.
E todos iam anotando e desaprendendo ao repetir tudo em voz alta.
Já na outra, acontecia um seminário sobre como as universidades cospem cursos e graduações que não condizem com a absorção do mercado de trabalho real, iludindo o estudante que deseja garantir sua graduação superior baseado na promessa de um emprego certo em um mercado de trabalho, praticamente, inexistente. Muitos usavam os cerca de 5 anos de bacharelado apenas como uma extensão do colégio e para apenas se deliciar dos tabus do mundo pelos centros acadêmicos e chopadas da vida.
Percebi que muitos desestudantes, com lágrimas nos olhos, deixavam a sala antes do terceiro slide projetado na tela.
Já em outra sala, a mais barulhenta, o histórico das religiões era passados quadro a quadro e iam sendo analisados minuciosamente, de forma a mostrar como é que a maioria dos dogmas e tabus foram construídos por membros das igrejas que queriam mesmo é garantir a sua influência nas tais, se aproveitando que estas, por não serem seculares, teriam mais dificuldade em aceitar novas propostas de mudança com o passar dos anos e as evoluções das sociedades em que estavam submetidas. Um dos alunos chegou a ameaçar o professor com uma régua no pescoço, mas foi logo acalmado.
Ele berrava algo sobre ele ir ao inferno por blasfêmia. A bíblia no braço era novinha, parecia comprada recentemente.
Foi aí que o diretor, me vendo vagar atônito pelo corredor, me convidou até a sua sala e me explicou o que era aquele local. Aí que pude entender onde estava. Em cima da sua mesa, tinha um crucifixo com Sócrates no lugar de Cristo. Reconheci pelos olhos redondos. Ao lado, o pôster de The Wall, do Pink Floyd.
- Não se ligue tanto naquilo - disse ele, enquanto colocava fumo no cachimbo. - É apenas uma provocação. Mas vamos lá, deseja fazer parte da escola?
- Não sei, ainda me sinto meio desconfortável...
- Desaprender é isso mesmo, mexe com a zona de conforto. É como meter o vergalhão no cano de esgoto, sabe, para deixar a água purulenta sair, as baratas correrem, e desobstruir as vias. A merda precisa correr livre e liquefeita, e não se concentrar na gente.
- O problema é querer se livrar da merda...
- É aí que a gente entra. Nosso trabalho é mostrar que existe muita coisa que não é dita e que é deturpada. A gente mostra que o prato principal é aquele que está em cima da mesa, e não o farelo que cai dela. Desaprender não é marchar contra o aprendizado, mas valorizar aquele que é verdadeiro, o que realmente nos nutre. Eis a sua inscrição.
- Mas...
- Volte aqui amanhã com este papel preenchido, mas não destaque este selo de cima. Darei este tempo para você pensar. Lembre-se que o desaprendizado é, praticamente, um sacerdócio.
- Mas...
- Sem mais. Dispensado, que tenho uma aula agora. Pense e venha.
Fui para casa, pensei, refleti e decidi que voltaria lá no dia seguinte para fazer a inscrição. Olhei a folha e coloquei meu nome debaixo do selo, na área marcada.
No dia seguinte, caminhei confiante pela mesma rua que havia passado. Porém, quando viro a esquina da pastelaria, não encontro mais a placa da escola lá. A porta está fechada e tem um papel colado
"Tire o selo".
Obedeço o papel e retiro o lacre da carta. Uma letra dourada e ornamentada diz:
Primeira e única lição: desconfiança. Tenha senso crítico com tudo e com todos, inclusive, para identificar escolas falsas. O verdadeiro Centro Intensivo de Desaprendizagem está na sua cabeça. O resto é ilusão e ideologia arquitetada. Vá em frente e agradeça por não ter perdido dinheiro.
Filhos da puta. Mas que geniais filhos da puta.
3 comentários:
Eu já ia perguntar onde me inscrevo. Primeira lição aprendida.
A desconstrução: como boa leitura de Deleuze e Guatarri, é por aí que desando. Lembrando que desconstrução excessiva constrói um buraco negro. Desconstrução e construção são dois movimentos contínuos importantes. ^^ Beijo beijo seu menino esperto pra caramba.
GENIAL. Sem mais. Assim fica até difícil comentar.
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