Foi Roberto Pereira Aguiar até os 11 anos.
Então, numa terça-feira qualquer ele se metamorfoseou, para o país todo, em Betinho do banco.
Eu era novo, me lembro do noticiário da tarde que transmitia ao vivo um assalto em algum banco no centro do Rio de Janeiro (não importa qual, não faço publicidade gratuita) que deveria ter durado, conforme o planejado pelos arquitetos do mal fadado projeto, alguns parcos e sofridos minutos, mas que acabou levando a uma situação esquisita, descontrolada, se prolongando por dias, semanas, um mês, e se consolidando como a maior situação de reféns em um assalto já registrada em solo nacional, e, quiçá, a mais duradoura do mundo até os dias correntes, recorde total, constando lá na página 256 do Guinness edição de 1994, junto do recorde de tortura mais longa, experimentada por um chileno da ditadura Pinochet que sobreviveu pra provar e contar a sua história, fato que somente lhe rendeu um nome no livro, e cicatrizes na pele e na mente, que nunca vão se fechar.
O assalto, a notícia que tomou proporções gigantescas, rodou o mundo, encerrando a fome das mídias nacionais e internacionais, movendo multidões ao logradouro carioca, que mantinham vigílias, protestavam, rezavam, faziam promessas e propagandas de seus negócios e produtos, entre outros absurdos.
O evento chegou até mesmo a cutucar a sensibilidade altamente seletiva de membros das nações unidas que se empenhavam em urrar bravatas demagogas, inúteis, se apropriando de metonímias deslocadas e de vocabulário burocrático que tudo envolve e , blá blá blá, direitos humanos, daqui e acolá, intervenção, corredores humanitários, falta de coerência, soberania nacional, san josé da costa rica, mortes, hecatombe nuclear.
Típico.
Neste circo, surgiu Roberto Pereira Aguiar, pra nunca mais se encontrar de novo.
O assalto tomou rumos imprevistos, o desespero se apropriou das razões dos organizadores e nessa, Betinho do banco se tornou o simbolismo máximo da fragilidade de toda uma raça que de tempos em tempos precisa de modelos de superação pra aguentar o tranco.
Arrancado de seus pais (um drama à parte que não cabe nesse relato), foi o último refém a ser libertado, se tornando vítima da violenta investida da internacionalmente conhecida polícia militar carioca, que restou por construir mais um episódio sanguinolento e ineficaz, mais uma cena pra colecionar e colar no álbum de figurinhas das trapalhadas do terceiro mundo e, assim, findou por deixar algumas cicatrizes de guerra e sequelas em Betinho do banco.
Por quase duas semanas ininterruptas, Betinho do banco, teve, exclusivamente, seu rosto estampado em páginas de mil jornais, diariamente, pelo mundo afora, e a força das suas frívolas declarações, influenciadas por uma provável síndrome de Estocolmo, soavam como hino para os mais desorientados, e para os leitores de auto-ajuda, Betinho meio que se tornou um messias juvenil, um guerreiro da luz desarmado, um Paulo Coelho precoce.
E aí, tudo acabou.
Os assaltantes encontraram seu destino na orgia de balas e cortinas de fumaça lacrimogênea que a divina intervenção policial propiciou. Betinho ferido, perdeu parte dos movimentos da perna esquerda, e a vida seguiu.
Nos meses seguintes, ele foi assunto, entrevistado, entrevistador, moda, objeto de consumo, marca de perfume, celebridade, rockstar, capa de revista.
Porém, como tudo na vida, o furor passou, o momento se foi, o morto esfriou, e aos poucos Betinho do banco, voltou a sua nova vida normal.
Mesmo não sendo mais o centro das reportagens ou mote de manchete alguma, entre seus pares, tinha uma importância diferenciada.
Betinho do banco, era cumprimentado e homenageado em festas de aniversários de outros amigos, as vezes esqueciam, de fato, quem estava fazendo os anos, tamanha era sua importância no evento
Era atacante, meio campo e beque ao mesmo tempo, escolhia garotas à dedo, era servido primeiro no rodízio, tinha todos os privilégios que valem à pena quando se esta na pré-adolescência.
Chegou a fazer parte do elenco de uma novela-série que passava às cinco da tarde num canal de TV aberta, mas realmente (realmente mesmo, porque esse parâmetro é vilipendiado diversas e diversas vezes), Betinho do banco não levava jeito pra coisa.
Na adolescência, ainda era conhecido e reconhecido e se aproveitava, (é claro, por que não?) da sua condição pretérita, e com isso, tinha lugar garantido nas festinhas particulares que rolavam à tarde nos apartamentos esvaziados de autoridades parentais, onde se descobriam, entre tantas coisas, o sexo, as bebidas, e como o tédio pode ser prolongado horas à fio.
Sentava no banco da frente do carro, preferencialmente, se livrando do aperto de quinze pessoas entulhadas nos assentos traseiros num fim de noite ébrio na zona sul, banhado de cerveja barata, suor e alguns outros odores desagradáveis.
Mas o tempo foi passando. E passando.
E Betinho do Banco, não soube lidar muito bem com isso.
É fácil não saber lidar com isso. Quase ninguém sabe muito bem ser esquecido ou posto de lado, e afirmo isso sem medo de incorrer em alguma falácia.
A questão toda, que move esse texto linhas abaixo, é que Betinho, não conseguia mais ser Roberto Pereira Aguiar.
Nas rodas que se formavam nas festas, encontros e em mesas de bares, pistas de dança, Roberto sempre tentava reacender a já fraca luz do holofote do passado sobre sua cabeça, relembrando a história da sua vida, e como tudo aconteceu, detalhe por detalhe, repetindo o que já havia sido repetido por quase toda uma vida.
Mas ela finalmente se apagou. A luz queimou.
Não fez mais nada desde aquele trágico acontecimento que deu contornos definitivos e únicos a sua estéril e desagradável existência.
Sua vida não andou. Nada. Um metro sequer. A vida não seguiu.
Sem conquistas, anseios, novidades, idéias, Roberto, se tornou um mala.
Uma pessoa enfadonha eternamente presa a uma nostalgia doentia, com suas inconveniências e forçações de barra, deslocando assuntos e temas pra encaixar de algum modo absurdo a sua história, tentando brilhar pela última vez.
Parece até que Deus guardou aquele único momento para ele, aqueles instantes, e nada mais.
Deus esqueceu de escrever o resto da história de Roberto. Parou em Betinho. Deu preguiça, Não sei. Cansou. Desistiu.
Hoje, aos trinta e alguma coisa, Roberto relembra Betinho do banco, todos os dias, mas ninguém mais se importa, não querem saber.
Vida que não segue.
2 comentários:
só pra que o texto não se sinta solitário...
Sucesso.
Às vezes, o destino escreve torto por linhas idem.
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