Uma parede. A tinta descascada forma cores sujas e os vergalhões enferrujados parecem fraturas expostas. Uma gota de sujeira corre pesada pelas imperfeições do relevo, como lágrima de sangue que desce por face enrugada. Feia e assustadora parede. Olho para os lados e também vejo parede. Até o teto é mais parede que teto, se diferenciando apenas por estar em cima (lugar em que geralmente os tetos ficam) e pelo fio no meio que ampara uma lâmpada bêbada e anêmica. O balançar faz com que ela se aproxime da parede. Aliás, das quatro paredes. Nenhuma porta. Essas são as primeiras visões que tenho ao abrir os olhos, após ser acordado pelo frio da cadeira de metal que me queima a pele nua. Como consegui ficar sentado nessa mesma posição por tanto tempo?
Aliás, como cheguei aqui?
Tento levantar para procurar algo que cubra minha nudez. Não pelo pudor, já que ele raramente dura muito tempo na solidão, mas pelo frio mesmo. A circulação me fugiu da cintura para baixo e as pernas não respondem. Esfrego as mãos nos joelhos. Formigas, formigas, formigas. Devo estar adormecido há muito tempo para acordar com o corpo tão dormente. Ou então é o medo. Sim, sim. Tudo culpa do medo.
Tudo culpa da parede.
Por sorte, esse cárcere desconfortável não foi capaz de me arrancar da melhor experiência onírica que já tive na vida. Durante o sono, viajei por mundos nunca antes explorados e descobri segredos nunca antes contados. Teses filosóficas e histórias jamais contadas estavam lá, como frutas maduras que se jogavam dos galhos direto para o meu cesto. Os domínios de Morfeu, o Deus-cerebelo, me entregou o manancial do sucesso de todo escritor: inspiração eterna para histórias. De que servem os hiatos criativos se posso ter ditongos e tritongos? Unindo essa dádiva ao meu talento natural para contar narrativas (talento ainda não revelado ao grande público), eu tinha em mãos a pedra filosofal da literatura.
Infelizmente, quando finalmente acordei agora para escrever tudo aquilo que passei e registrei durante estas incessantes viagens, me deparei com essa parede! Lúcifer deve ter sentido a mesma coisa quando, por milésimos de segundo, sentiu o poder de ser o mais sapiens dos seres da história da criação e, logo depois, despencou do firmamento até queimar como um foguete que incandesce e vira pó ao tocar a atmosfera terrestre.
Teria Lúcifer visto uma parede?
Agora é a raiva que me atropela as sinapses. A raiva e a frustração. Notoriamente, meu sequestrador conhece meu TOC mórbido. Sabe que possuo, de profissão, a doença crônica do registro. Privou um jornalista de ter papel e caneta em seu cárcere. Isso é tortura. Sei que não se escreve apenas escrevendo mas, como a minha memória nessa idade é a mesma de uma galinha velha, preciso de anotações. As histórias são muitas e por demais complexas para serem guardadas em detalhes de cabeça. Infortúnio!
Agora ouço uma respiração pesada vinda bem dali, de onde a luz não chega. Alguma coisa se mexe bizarramente naquele canto, ocultada pela penumbra, como um saco negro que se contorce. Estranho como não percebi nenhuma movimentação ali há um instante atrás. Isso me deixa apreensivo. Agora a massa parece querer ficar de pé e se mexe ainda mais bruscamente. Assustador. Agora sim, ela parece estar de pé. O contorno de uma figura humanóide caminha na minha direção. Estou tenso. Agora a luz fraca começa a iluminar parcialmente uma figura masculina nua da minha altura, cada vez mais próxima. Não tenho coragem de fitar-lhe o rosto. Tento me levantar bruscamente, mas as pernas não respondem bem e acabo indo ao chão com violência, espalmando as mãos em uma poça de água purulenta. A figura chega mais perto e para diante de mim. Vejo seus pés nus e negros, bem longíneos e deveras conhecidos. Tenho medo de levantar.
A voz grave me vem de cima:
- Vou direto ao ponto porque você gosta de ir direto ao ponto e assim serei. A única diferença é que não há diferença, já que eu sou mais você do que você mesmo é. Entendeu?
Esta voz me é por demais conhecida. É a voz que escuto todos os dias dentro de minha cabeça, quando leio ou quando abro a boca. Esta é a MINHA voz! Tomo coragem e resolvo me levantar ignorando as dores corporais para, enfim, fitar a cara daquele que me aborda. Eis que me encontro como que diante de um espelho. Apesar de toda a sujeira e fuligem grudada no corpo despido, percebo que a criatura sou eu. Agora sim tenho certeza de que isso tudo é um sonho. Apenas mais um, depois de tantos. Ainda estou na sequência. Parece que o deus-cerebelo ainda tem planos com a minha pessoa.
- Aconselho que você volte para a superfície o quanto antes e pelo mesmo caminho que chegou aqui. É preferível que se respeite as etapas. Quem quebra esta regra acaba tendo complicações trágicas. Os exemplos são inúmeros e dolorosos - diz ele com o mesmo freneticismo facial dos viciados em pó, como se quisesse morder a própria orelha.
- Que cami...
- Como assim que caminho? Já se esqueceu? O Mergulho, a Matrioska!
- Quê?
- São pouquíssimas as pessoas que conseguem mergulhar no Poço.
- Você diz os sonhos? Este é um...
- ...deles? Não é só um, mas como é O. É como eu disse, Matrioska.
- Matrioquê?
O ele-eu se irrita e soca a própria mão freneticamente, como os olhos esbugalhados e vermelhos. Um fio grosso de saliva escorre pelo seu lábio e é rapidamente sugado de volta à boca em questão de segundos:
- Matrioska! O nome russo das bonecas-russas! Já viu uma? Um universo montado dentro de outro, como uma gravidez exponencial. Um ciclo quântico que pode ser infinito. Foi assim que você chegou aqui.
- Você fala dos meus metasonhos? Esta coisa de ter um sonho dentro do...
- ...outro? Se quiser usar um exemplo simplório, apoético e humanamente insosso, sim. Você sonhou dentro do próprio sonho.
- Ah sim, isso eu perc...
- ...percebeu porra nenhuma! - e outro soco na mão - Não, desta vez foi diferente. Dentro desse metasonho você sonhou de novo, e de novo, e de novo...varias vezes! Até que chegou aqui.
- Na parede.
- Ou na última matrioska. O ponto final da sequência. Só se consegue chegar na menor delas quando se descobre as outras. A volta para casa é o inverso disso, a saída mais segura.
- E como eu subo de...
- ...volta? Pelo mesmo caminho que você chegou aqui. O problema é que, voltando por essas etapas, você corre o risco de esquecer tudo aquilo que viu, passou, sentiu, viveu, sofreu até aqui.
- Não devo...
- ...fazer isso? Ih, perdão por te interromper sempre assim. - ele balança as mãos no ar - É que, como nós dois somos o mesmo, os nossos tecidos de raciocínio são entrelaçados. Linha cruzada, sabe. O pior é que isso me dá uma sensação péssima. Uma dor de cabeça horrível e um gosto pavoroso na boca, de sangue ou de ferrugem. Ou do cheiro de ferrugem que é o do sangue...
- Tá, tá, tá! Então tente controlar o que você pensa para que eu pense melhor!
- Tudo bem, tentarei.
- É o seguinte, não existe outra forma de que eu acorde sem perder nada daquilo que passei por aqui?
- Existe uma forma sim. Mas... - olha para o chão e me dá as costas, fazendo desenhos aleatórios na poça suja com o o dedão do pé - É perigoso...
- E qual é?
- Quando a pessoa comete alguma violência contra si durante o mergulho, isso força a consciência a submergir. Beliscões, tapas na cara etc. Mas isso não é tão simples assim. Como esta é a última fase do mergulho, o ponto final do sonhar, a violência precisa ser, com perdão da redundância, deveras violenta.
Apesar da notória expressão de alerta deste meu eu sujo, a idéia não me pareceu absurda. Essas formas de acordar já são mais do que conhecidas por aqueles que desejam sair bruscamente de um sonho. Olho para a parede cogitando chocar contra ela de cabeça.
- Eu vou sentir dor? - pergunto.
- Nem vai. A volta é muito rápida para que você tenha tempo de sentir alguma dor que doa.
- Tem certeza?
- Não confia em mim? Isso é, em si mesmo?
- Tá, então, o que me opinas?
Ele pega a cadeira e a arrasta para debaixo da lâmpada.
- Me dê a mão esquerda e pise naquela poça-d´água.
Ele segura a minha mão e, colocando-se de pé em cima da cadeira, segura a lâmpada com a mão direita, o que faz a sala tomar um tom avermelhado.
- Preparado?
- Não tem outra opção?
- Bem, eu posso te estrangular...
- ...preparado.
O ele-eu quebra a lâmpada com as mãos e sinto a corrente elétrica cruzar meu corpo.
x
Acordo e me vejo sentado confortavelmente em uma cadeira junto de outras pessoas, sem nenhuma parede. O local é um auditório de universidade e estou justamente na posição de destaque da mesa. Milhares de jovens se acotovelam para escutar as palavras que saem de minha boca. Tenho em mãos, devidamente autografado por mim, o meu quinto romance: um best-seller. Acabo de dar minha palavra. Olhares de admiração profunda. Palmas, palmas, muitas palmas. Luzes e flashes me queimam os olhos. Sinto o cheiro doce e embriagante da satisfação e do reconhecimento, mas sinto-o de longe, através da película da poça de água do chão. Quem submergiu foi ele, esse sujeito eu que habitava essa sala. Já o eu-eu, ficou preso por aqui mesmo, até que esse canal se abra de novo com mais uma matrioska.
Enquanto isso, esperarei pacientemente por aqui aturando essa dor de cabeça forte e esse gosto horrível de sangue que parece de ferro e ferrugem.
A parede.
5 comentários:
Adoro bonecas!!! E bonecas vermelhas então... Cor de sangue, às vezes, de ferrugem... São lindas, lindas as bonequinhas russas :) :) :)
Clap, clap! Muito bom, Pu! Já tive uns sonhos malucos desses, um dentro do outro. É insano...
Sério, dava um curta irado isso aqui. Quando comprar minha câmera... já sabe... hahaha
Muito bom!!!
Não conhecia esse seu "estilo" de escrever.
hehe.
Porra...já sonhei assim também.
Bizarro...haha.
ahahahahah ADOREI.
Porra, que coisa meta, meta, meta metaioska!
Me assusta essa coisa de nos perdemos no nosso próprio eu por conta do tanto de máscaras que precisamos usar nessa vida de Meu Deus.
Mary Shelley, esposa do poeta inglês Pierce Shelly, frequentava com o marido o "chatô" de Lord Byron (outro poeta romântico inglês) nas proximidades dos Alpes Suiços... Certo dia, os três se empolgaram contando histórias góticas de fantasmas, histórias alemãs que inspiravam a poesia romântica. Lord Byron propôs um desafio aos três: criar a história mais horripilante que pudessem. Nesta mesma noite, Mary sonhou com o que seria o "esqueleto" da trama de Frankenstein e acordou com ânsia de desenvolver seu sonho em papel.
Às vezes, tenho sonhos mirabolantes... Sempre me pergunto se poderia funcionar como para Mary Shelley :s
P.s: Agora o clássico... E se eu sonhasse com o número da Mega-Sena? :D
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