viajava como viaja a maioria: fitando a estrada entediante, mas de modo algum buscava capturar pra dentro da retina qualquer imagem.
era como se fosse possível que aquelas paisagens rápidas e repetitivas entrassem por um ouvido e saíssem pelo outro, numa surdez cega, e assim, imergindo para dentro do seu próprio corpo, seus olhos externos e desatentos tentariam desvendar o que realmente estaria a se passar lá dentro.
e passaria horas assim, com a boca entreaberta, babando tédio pra fora, interessado no desenrolar do pensamento que se precipitava, interesse que esbarrava na cratera que um dia já se chamou de buraco, no meio da rodovia.
uma vez imerso, isolado em si mesmo, se afundava em pretéritos perfeitos, como se pudesse intervir no presente, modificando o passado de certo maneira, que não estaria ali hoje, e sim em algum lugar longínquo, na figura de um sheik, um falsário, um banqueiro em Milão, um atleta na Nigéria.
Repensava as frases, os gestos e buscava adivinhar como seria aquele sábado que estava por vir, como o fabuloso descanso feito para se gastar dinheiro em lojas de shopping e em bares caros e sem identidade. pensava muito nas situações que poderia passar, e pensava nas possibilidades e nas frases que poderia usar, e nos seus efeitos.
ae se o dia não desse certo, apagaria com uma borracha e começaria a recria-lo, desde o ponto zero. até que tudo realmente valesse a pena
apertando os olhos, buscava mudar o rumo da prosa, imaginando mundos em verde, mundos azuis e vai daí, mundos em branco, fadados ao esquecimento, num mero exercício de autocontrole, para se manter dono de si mesmo e apenas isso. apenas isso.
pensava que passou um grande tempo, que perdeu anos, absorto nesses pensamentos soltos, sem amarras e sem finalidade alguma.
quantas horas daria isso?
quantos anos?
seria possível perder tanto tempo em nada?
porque aquilo era nada, simplesmente nada.
ele sabia disso muito bem, mas insistia mesmo assim, porque era mais forte do que ele, era poderoso, era inevitável.
o que pensaria Dona Natália, com seu olhar perdido e abandonado apoiado na tarde com seus bracos encostados na jardineira da janela do segundo andar, fitando as tardes inteiras, até velar a noite e se deitar para repetir a mesma rotina, de novo e de novo, até o derradeiro dia, que tardou a chegar.
No que Dona Natália pensou nesses tantos anos, nesses fins de tarde eternos. no que? no que, Deus? em que Deus ?
talvez, no movimento, no trânsito intenso de formigas mal-humoradas e mal-pagas, que lotavam as ruas de jacarepaguá, talvez nos camelos embaixo da sua janela com seu linguajar próprio, que as vezes confundia, as vezes interessava.
talvez pessoas conhecidas que não a cumprimentavam mais, por desinteresse, falta de tempo ou afinidade, ou até por efeito de alguma medicação forte, alzheimer, impaciência.
era isso. a estrada hipnotizava.
não pela beleza que se revelava a cada curva nova e inesperada, já que era uma geografia tão comum quanto rudimentar, mas sim, devido aos longos hiatos entre uma curva e outra, a reta reflexiva, que concedia aos passageiros, à todos os passageiros do mundo, a possibilidade de questionar tudo ao horizonte, numa espécie de confissão esclarecedora, um bate papo amigo, o rosto no céu que nunca se formou, e que se confundia sempre com desenhos de nuvens que tentávamos humanizar.
assim como a tarde reveleva algo inenarrável para Dona Natália, algo que ela nunca pode explicar e nunca poderá.
vai saber...
6 comentários:
como sei que não haverá muitos comentários, comento aqui, pra provar o nada... comentei e n disse coisa ... nada
nada já é alguma coisa!
adorei o texto. vc escreve bem por isso é bom de lê.
a gente exclui um comentario pra trocar o nome.. e ele fica lá ainda.. merda hein ¬¬'
Coisas do blogspot, mas nada o que um moderador atento não possa modificar. ^^
Gostei, gostei = ]
Que paz que me deu.
Enquanto lia, conseguia visualizar a imagem da estrada na minha mente, ou ate mesmo das formigas na calçada.
realmente mto bom.
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