O suor lhe escorre pelas bochechas rosadas, borrando a maquiagem pesada, e os lábios carnudos esboçam levemente um sorriso. Ela está feliz, muito feliz, radiante. Já entornou metade da garrafa de um vinho retirado do bar da casa do amante, que jaz nu no chão gelado como sua pele.
"Este foi fácil, tinha pescoço de virgem", pensa. Bateu seu próprio recorde. Matou em menos de 5 segundos, enquanto a vítima tentava lhe tirar o sutiã. "Direita-esquerda-empurra-puxa-e-empurra, perfeito! O pescoço parte como um graveto!", pensa alto se acabando em risos tortos, entre as fortes goladas do vinho rascante que está mais para vinagre. Bebe como macho. “Nossa, estou turvíssima!”, e ri ainda mais alto. Tomou tudo que pôde para executar esta missão. Este foi o quinto pescoço partido da noite. A quinta máscara quebrada.
- Cafajestes, tremei! Sou o anjo da morte! - grita bêbada pendurada da varanda do prédio e gira graciosamente a cintilante garrafa vazia no ar, que se solta de sua mão e cai no teto do galpão abandonado do terreno baldio, causando um barulho violento orquestrado por milhares de latidos. O Anjo da Morte adorava se denominar assim. Ou apenas Angel, como também gostava de ser chamada nesta nova identidade.
O ódio de Angel pelos homens teve como gatilho a sua primeira e forte decepção amorosa. Oswaldo a largou e se casou com uma namorada antiga, muito mais nova, magra e bem-sucedida. “Mas ele era tão perfeito, e era tão meu...como pôde? Depois de oito anos de relação?” Entrou em depressão e mergulhou de cabeça nas raias da cocaína e na onda do álcool, parando em uma clínica de recuperação. “Se você continuar assim, a próxima vez que você vier parar aqui será em um caixão de metal, apenas para que eu retire o seu fígado fodido com uma concha de feijão e use de amostra para aqueles que ainda pretendem levar esta vida” disse o médico que cuidou dela. Isso a impactou tanto que, recuperada, se voltou para os estudos acadêmicos com a finalidade de se ajudar e àqueles que sofrem dos mesmos males do miocárdio.
Explicando a sua situação a um de seus professores preferidos, este lhe disse que todos nós usamos máscaras que escondem e protegem o nosso Eu real do mundo e que também utilizamos estas máscaras para transparecer o que queremos passar a alguém ou a um grupo.
- Pois é, somos todos artistas do teatro da vida e, como em toda peça de elenco variado, existem maus e bons atores – completou o acadêmico. Isso mudou a sua vida. Angel entendeu pela sua lógica contaminada de rancor que, na verdade, ela havia se apaixonado não por Oswaldo, mas sim pela máscara que ele utilizava quando se relacionava com ela. Então jurou para si que jamais haveria de se relacionar de novo com alguma pessoa mascarada. Em vão. Angel se decepcionou muitas outras vezes, pois sempre que achava ter descoberto a personalidade real da pessoa, era surpreendida pela “máscara”. Então veio outra decepção, e outras, e outras, até que Angel acabou voltando para o mundo de pó e cachaça.
Entorpecida de rancor e cólera, colocou na cabeça que todos os homens com quem se relacionou são rostos que não possuem nada mais além da máscara e se sentiu no dever de “quebrá-las” para que ninguém mais passasse por aquilo que passou. Ela seria uma espécie de protetora dos cafajestes, um anjo. Implantou silicone, comprou roupas provocantes, se maquiou bem e foi seduzi-los com esta nova identidade. E conseguiu. Quebrou o pescoço de todos os homens com quem teve alguma decepção outrora e que não a havia reconhecido vestida daquela forma. Inclusive Oswaldo, aquele que está agora no chão do quarto. O primeiro homem da sua vida e o último da sua lista.
Mas agora, ali na varanda, com o vinho escorrendo pelas bochechas rosadas e os lábios carnudos esboçando um sorriso, quando começa a pensar em seus ex-amantes mortos, gelados e com as veias duras de sangue seco, não fica feliz como pensou que ficaria. A necessidade de quebrar mais máscaras ainda pulsa em seu peito siliconado, um frenesi incontrolável como o maior dos vícios ou a mais deturpada das virtudes. Afinal, ela é Angel, o anjo da morte, a incumbida pelas forças divinas a quebrar as máscaras dos homens e revelar a sua verdadeira personalidade, ou a falta dela. Nesse momento de torpor, Angel se depara com o seu reflexo na porta de vidro da varanda.
Seus olhos se fixam em si por longos minutos. Em seu rosto fino escorre uma lágrima pelas bochechas rosadas, que borra a maquiagem pesada, e os lábios carnudos desfazem bruscamente o sorriso. Os olhos descem e fitam seus ombros fortes e largos.
"Ainda resta uma máscara", pensa.
Angel se aproxima do pára-peito e fica de pé nele. Olha para baixo, sente vertigem e volta. Sirenes já podem ser escutadas pela cidade. "Eles já sabem do Anjo da Morte!" pensa, com leve orgulho. A polícia está a caminho, mas ela sabe que a sua missão ainda não havia terminado. Ainda resta uma máscara.
”Ainda resta uma máscara!”
Angel inspira, anda de costas até a sala, passa pelo corredor e, se utilizando do espaço como impulso, corre até a varanda abrindo os braços e, como uma pluma, salta cenicamente do décimo segundo andar do edifício em uma postura angelical.
A descrição dos anjos são bem variadas pelas culturas do mundo. Muitas dizem que estes seres celestes são guerreiros de batalhas apocalípticas e outras que eles são apenas espíritos mensageiros. O único consenso que parece existir é quando se trata da sexualidade desses seres. Na maioria das culturas, eles parecem como criaturas andróginas. O corpo de Angel, ou Álvaro Ramiro Soares, de acordo com o RG, foi encontrado pela polícia no terreno baldio ao lado, depois de ter varado o telhado de amianto do galpão abandonado. Angel, ou Álvaro, quebrou a última máscara que havia lhe feito algum mal. Agora nada mais lhe resta além do sangue que escorre pelas bochechas macilentas, como uma maquiagem pesada, e os lábios carnudos que esboçam levemente um sorriso. Angel era obcecada por jamais ter conseguido se relacionar com uma pessoa de personalidade verdadeira, apesar da palavra Personalidade se originar da palavra grega persona que, ironicamente, significa Máscara.
7 comentários:
há algum tempo atrás eu tinha um blog chamado "persona travestida"...
conto torto e roto, belo!
me lembrou alguma coisa de graphic novel. sei la, alguma coisa meio frank miller, will eisner.
nao a historia. mas esse clima.
essa nuvem
O legal é que essas graphic novels são completamente inspiradas nos romances "negros", em que a cidade cinza corrompe as pessoas, a sala de detetive cheira a guimba de cigarro e o ventilador de teto completa 1 giro por minuto de tão lento.
Adoro esse conto!
palmas.. intrigante escrito!
:)
adorei o seu texto!! É dificil prender minha atencao por tanto tempo, parabens! Voce é jornalista?
adoro essa atmosfera meio gótica das coisas.
parabéns, Pu!
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