Pois bem, aí vai uma peculiar visão do inferno.
Uma contemplação curiosa, de alguém que guarda na cabeça, ombro, joelho e pé, a culpa católica (tão em voga ultimamente) assim como quem carrega uma mochila cheia de tijolos para uma excursão de escola secundária.
Desde pequeno eu a tinha, a visão. Não precisei me valer da leitura de Alighieri, não fui buscar algum significado na mitologia, nas diferentes religiões, nem ao menos busquei inspiração em Sartre.
Ela estava lá. Feita sob encomenda..
Nasceu comigo.
Talvez não tenha nascido, mas garanto que é aqui que vai morrer: dentro de mim.
A idéia é bem simples:
Depois do desenlace, imagino essa sala.
Uma sala pequena com uma cadeira. Não importa a cor das paredes, nem o tipo de cadeira. O cliente escolhe, insconcientemente. Simplesmente escolhe.
E lá se espera. Não é o purgatório. Não é o limbo. Não se busca a salvação, a expiação. Apenas se espera.
Mas não muito. O tempo passa rápido no meu inferno. É apenas o bastante.
Passado esse período, a porta se abre.
Um homem de feições familiares, embora totalmente desconhecido, avisa que logo as pessoas começarão a entrar para que então comece o procedimento infernal. E se senta, numa das cadeiras que ele trouxe.
De uma em uma, elas entram. Todos os rostos que já passaram por sua vida.
A primeira se senta, de frente, te encarando incessantemente, com os olhos mareados.
Os que virão em seguida, agirão de modo idêntico.
Todos sentados. De frente para você. Olhos mareados.
Então o ritual começa.
O convidado, apenas ouve, enquanto o desconhecido familiar inicia a leitura de um caderno de couro preto, que ele saca em dado momento, já pretérito agora.
E começa:
- Iremos agora, segundo o protocolo, confrontá-lo, com todos os humanóides que você já teve contato. Uma confrontação verbal. Por menor que tenha sido o contato. Para esta pessoa estar aqui, presente, só é necessária uma condição: que você tenha mentido, enganado, omitido, traído, trapaceado, ludibriado esse indivíduo. Qualquer mentira, mesmo possuindo um rastro de bondade nesta, de caridade, de proteção, amparo, altruísmo. Caso argumente que sua memória pode falhar, saiba q isso não ocorre. Nós aqui disponibilizamos para seu conforto, todas as lembranças que você pode ter, de toda a sua vida, sem o risco de enlouquecer. Logo, você nunca teve tanta consciência de tudo que já fez, leu, aprendeu, viu, falou etc etc. Para cada um que entrar, você só precisa contar, ou seja admitir que mentiu.
Todas as mentiras, tudo, detalhe por detalhe, olho no olho.
As mentiras desfilarão aqui através dessa passarela contruída por simples fatos, histórias corriqueiras aumentadas muitas vezes em suas proporções, intencionalmente, ou até mesmo conseqüente de uma oratória mais emocionante, hilária, trágica, dramática. Desfilarão traições severas, covardes, que marcam a alma, e o corpo, nas dobras da pele, na ruga do olho, no estalo da perna.
O caderno de couro que causa suor em minhas mãos, e que logo será o motivo principal da sudorese na sua testa, contém todas as informações existentes na sua memória. Qualquer item que não for assuntado, será lembrado e trazido a tona.
E que comece, pode entrar senhora Genilda, professora do maternal. Sente-se. Reconhece este rapaz não ? (...)
Me preocupa, honestamente, esse minha idéia das trevas eternas..
Criei uma teoria para uso próprio (não recomendo a nenhum ser vivente) que garante que o pós-vida de cada um, depende da imagem-criada, da concepção que ela tem do que vem depois. O imaginário individual, não o coletivo, cria seu personal-hell.
Com isso, achei que conseguiria criar um novo mundo inferior pra mim e me livraria desse que me persegue e que expus nesse desabafo em prosa. Insistiria nessa nova idéia, e a fixa, antiga, seria substituída.
Tenho que dizer que não colhi frutos na minha tentativa.
Hoje em dia, ando pelos cantos, contendo os contos, abreviando frases, evitando conversar quando não estou no comando de minha consciência ( situação que acontece com uma rigidez britânica e até mesmo, cadavérica ) e evito, acima de tudo, falar de mim.
Também tenho medo das vezes que escrevo e me auto-retrato com um copo de uísque, um cigarro no canto da boca, a barba mal-feita, quando na verdade, o que faz companhia, o amigo na madrugada, é uma caneca de 500 ml de farinha láctea, e um biscoito cream-cracker, água e sal. Já a barba permanece sob o efeito de uma gillete mach3. Sóbrio demais.
Gosto de imaginar empresários, jornalistas mainstream, advogados gananciosos, políticos brasileiros nesta minha profana comédia. É a minha maior diversão.
Mas gostaria de lembrar. Não é uma comédia. Não acaba bem. É uma profana tragédia.
5 comentários:
Nossa cara, que belo e trágico desabafo.
Me identifiquei.
FODA! RS..."imagem-criada"...foda!
MUITO BOM! Genial a imagem do seu personal hell... O meu é um pouco mais simplista: eu em pé num ônibus lotado num engarrafamento eterno na Avenida Brasil. Escreva mais, você promete.
Cara, que texto fodástico! Parabéns!
Não gosto muito de pensar nisso...deve ser porque a imagem que mais temo é também logicamente a que mais acredito. Gostei muito do texto! Parabéns!
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