Conte até três e Pense: há quanto tempo você não sintoniza seu aparelho de som em uma rádio? Aliás, aparelho de som é quase piada quando muitos de nós passeamos pelas avenidas munidos de nossos Ipods e mp3 players.
E rádio AM, você conhece? Pois é, se você nasceu por volta da segunda metade da década de 80, provavelmente é um dos componentes da geração atual, criada sob a cultura e influência das rádios FM.
Quem me conhece sabe que trabalho há quase um ano em uma rádio na freqüência AM. Rádio Haroldo de Andrade. Pra quem não sabe, o Haroldo de Andrade é um dos homens mais importantes do rádio brasileiro. Você, quando criança, provavelmente deve ter ouvido sua mãe, pai ou avô sintonizando a rádio Globo para ouvir aquela que é uma das vozes mais marcantes do rádio. Pergunte à sua mãe se ela lembra do "Bom Dia" do Haroldo de Andrade?
Antes de continuar, quero ressaltar que fiz de tudo para não escrever em primeira pessoa. Mas não achei outra forma para contar histórias dos outros.
Como estagiária de jornalismo, uma das minhas funções é atender as ligações dos ouvintes.
Os estudantes de jornalismo que passam os olhos pelo Linfa sabem da insistência dos professores de radiojornalismo para nos convencer a ouvir rádios AM, onde o noticiário é intenso e a participação do ouvinte cobre grande parte da programação.
Até você ter contato com um tipo de coisa, você nunca vai realmente saber como ela funciona. Fato. E foi assim a minha experiência com o AM. O público, como se imagina, é de maioria idosa, em torno dos 60 anos, com baixa escolaridade, muitos da classe C , D e E e moradores da Baixada Fluminense.
O fato de ser rádio AM, e você estar entrando na casa dessas pessoas a todo momento, esses ouvintes acabam te adotando rapidamente como alguém da família. É impressionante, e eu diria até chocante, constatar o índice de solidão e carência desses senhores. São idosos que vivem sozinhos, deficientes visuais, cadeirantes, hipertensos, obesos mórbidos e solitários. Solitários acima de tudo.
No começo, quando você não pega a manha de dispensá-los rapidamente (até porque você precisa trabalhar), você se torna um ouvido gigantesco que leva, diariamente, histórias e mais histórias tristes pra casa. Com o tempo, infelizmente talvez, você fica anestesiado e, muitas vezes, não sente mais pena e nem tem mais paciência. Por isso eu não acredito nos psicólogos.
Depois de muito tempo de anestesia, um simples pedido de uma ouvinte me comoveu. Ela pediu para anunciar o aniversário dela, dia 15 de novembro, na rádio. Ela pediu também que, se a rádio pudesse, a enviasse um buquê de flores.Anotei seu endereço e prometi tentar o presente. Ela me agradeceu quase chorando, e meus olhos se encheram d´água.
Ela queria apenas flores. Somente isso.
Ela também deve querer companhia, pois a única que tem é a do rádio, dos meus ouvidos desconhecidos e os ouvidos das estagiárias dos outros turnos, tão desconhecidos quanto. Somos verdeiros confessionários sem rosto, sem corpo. Somos somente a voz que eles têm para se apoiar.
Desculpem pelo texto parcial, confuso e testemunhal, mas desde o ano passado eu tento falar sobre os efeitos do rádio. Percebi que é impossível. E escrever sobre rádio enquanto todos nós estamos diante do computador é quase irônico. Contraditório talvez. Mas também pode servir pra refletir como certas coisas sobrevivem.
Já que não temos o hábito das rádios AM, será que um dias elas desaparecerão? Idosos solitários um dia morrem...
Tal reflexão me remete ao excelente “A Era do Rádio”, dirigido por Woody Allen, quando, no final do longa, um dos astros do rádio na década de 50 encerra o filme perguntando: “Onde estaremos nós do rádio no futuro?”. Essa resposta os ouvintes sobreviventes sabem responder. Ah, se sabem.
*foto by Cynthia Martins
5 comentários:
“O rádio é a escola dos que não têm escola. É o jornal de quem não sabe ler; é o mestre de quem não pode ir à escola; é o divertimento gratuito do pobre; é o animador de novas esperanças, o consolador dos enfermos e o guia dos sãos – desde que o realizem com espírito altruísta e elevado”.(Edgar Roquette Pinto)
Haroldo de Andrade, Osmar Santos e tantos outros nomes fazendo bonito nessa bendita mídia... AM, FM, Webrádio, todos sempre terão seu espaço, acredito.
Impossível de um texto passional com este ser "objetivo". Está certíssima em escrever em primeira pessoa.
Sobre a rádio AM desaparecer: não sei. Toda forma de mídia que fica "obsoleta" nunca desaparece por completo (apesar de não ter mais o lugar privilegiado que tinha) e creio que isto é apenas o fogo do momento mesmo, assim como foi no início das rádios de Frequência Modulada (FM), quando se pensava que as AM desapareceriam também. Aliás, lembremos que apenas 20% da população mundial têm acesso à internet, por isso o rádio ainda terá o seu valor por muito tempo ainda.
Só não sei como a nova geração encarará isso, já que ela mal sabe escutar o amigo do lado quando ele precisa, já que a nossa geração é mais dispersa que o gás hélio.
Deve ser um grande aprendizado trabalhar com um dos grandes radialistas do Brasil. Assim com a menina da imprensa acredito que tem e terá espaço tanto para as AM, FM, Webrádio. Acabar com a AM, é por fim a uma parte da história do rádio nacional. Afinal, grandes programas foram e ainda são transmitidos nesta frequência.
abraço!
http://www.somdosom.com/
Olá. Parabéns pelo texto lindo. Sobre as rádio AM, tô fora. Não gosto daquela zoada toda, sobretudo dos telefonemas no ar. Mas, me sensibilizei com o seu texto emocionado. Saludos & Parabéns de novo. Maria José Limeira.
Lindo demais o texto, Cy! Quase chorei com a parte da velhinha das flores. Pararei um dia pra ouvir rádio, de verdade.
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